A abolição do acaso em Mallarmé


 

Il y a dans le mot, dans le verbe, quelque chose de sacré
qui nous défend d’en faire un jeu de hasard.
Baudelaire


O LANCE DE DADOS HOJE

O prolongado culto do difícil conduz ao mito, ao consenso medusante e rumoroso que se forma ao redor do inexplicado. Eis o efeito, não completamente desproposital, que exerceu sobre os modernos o poema Un coup de dés jamais n’abolira le hasard (Um lance de dados jamais abolirá o acaso), de Stéphane Mallarmé, publicado pela primeira vez na revista Cosmópolis, em 1897. Empregando um arranjo tipográfico revolucionário, posto a serviço daquilo que seu autor chamava de “subdivisões prismáticas da ideia”, ao longo do século XX essa obra encetou uma mitificação formalista sem precedentes, capaz de alçá-la ao estatuto de um genuíno enigma que clamava por decifração.  Contudo, uma vez aplacados esses excessos encomiásticos tardiamente sucedidos após a morte de Mallarmé, ocorrida em 1898, novas abordagens de seu trabalho começam a surgir, mais consentâneas a essa inteligência admirável e anterior à eclosão das vanguardas. Os últimos cinco anos trouxeram uma profícua ebulição editorial e interpretativa relacionada ao Coup de dés. Novas traduções e edições críticas do poema podem ser buscadas com facilidade pelo leitor na internet, assim como algumas provas da sua preparação tipográfica anotadas pelo próprio autor. Por sua cuidadosa fidelidade ao desejo original de Mallarmé, sugiro a bela edição de Michel Pierson & Ptyx, de 2010, que pode ser gratuitamente baixada no endereço coupdedes.com

O poema em síntese invoca um indivíduo que, a bordo de uma embarcação à beira do naufrágio, hesita em lançar seus dados sob um céu estrelado que cobre o mar revolto. Mas, como se verá, em se tratando de Mallarmé nada disso é apenas propriamente isso. Vou então me deter em duas dessas novas abordagens interpretativas, procurando evitar, na medida do possível, a redundância na análise de uma obra fundante e seminal já alentadamente debatida por autores como Sartre, Gide, Blanchot, Barthes, Deleuze, Lyotard, Hauser, Noulet, Valéry, Hyppolite, Adorno, Rancière, Paz, Meschonnic, Kristeva, Derrida, Badiou e Burguer, entre dezenas de outros filósofos, teóricos e literatos vinculados a inúmeras correntes intelectuais e idiomas para os quais esse poema foi traduzido.

A primeira dessas abordagens interpretativas a que me refiro – e creio também a mais importante – é o minucioso inventário das recepções estéticas e filosóficas do poema, empreendido por Thierry Roger em L’archive du Coup de dés – Étude critique sur la réception d’Un coup de dés jamais  n’abolira le hasard, de Stéphane Mallarmé, 1897-2007 (ROGER, 2010). Cobrindo a difusão da obra desde o seu surgimento até o ano de 2007, essa meticulosa pesquisa já nasceu incontornável para os especialistas, pois praticamente tudo o que foi dito e mesmo silenciado a respeito do Coup de dés – e que é frequentemente repetido como novidade, mercê da mais pura falta de acesso a uma cartografia crítica mais abrangente–, parece estar aí, conquanto as análises de Roger não se cinjam a só compor um panorama cronológico da sequência de recepções.

Em seguida, no ano de 2011, o filósofo Quentin Meillassoux publicou Le Nombre et la sirène (Fayard), obra efusivamente saudada por parte da imprensa literária francesa como a “decifração definitiva” do poema-enigma de Mallarmé (veja-se,  a esse respeito, a matéria Le «Coup de dés» enfin décodé, do Nouvel Observateur de 28-09-2011). Servindo-se de pesquisas anteriores com grande desenvoltura, Meillassoux produziu uma análise instigante e de grande erudição. A hipótese central do seu Le Nombre et la sirene pode ser colocada da seguinte maneira: existe um número cifrado no Coup de dés, e consegue-se apurá-lo simplesmente contando as palavras que compõem o seu corpus textual, o que totalizaria 714 vocábulos. Entretanto, por um conjunto de razões que julgo evasivas e pouco sustentáveis, Meillassoux decide interromper abruptamente a sua contagem um pouco antes do final do poema, justo na palavra sacre (sagra), o seu 707º vocábulo. Assim, segundo o autor, o número 707 conteria a perfeita alternância entre os dois algarismos que comandam a interpretação do texto: o 7 (a representação do Absoluto) e o 0 (a representação do Nada). Sobre o verso do poema que evoca “o único Número que não pode ser um outro” (l’unique Nombre qui ne peut pas être un autre), Meillassoux afirma: “De fato, o que poderia ser um número cuja unicidade provém disso que ‘não pode ser um outro’?  De um ponto de vista aritmético, esta ideia não tem evidentemente nenhum sentido […]. Mas mesmo o admitindo, não se pode singularizar assim um número único que, ao contrário de todos os outros números, afirmaria a sua perfeita necessidade sendo idêntico a ele mesmo. O impasse está aí inclusive caso se reflita sobre o Número do ponto de vista do lance de dados: todo o resultado de um lance de dados é necessário uma vez que ele se produziu, é nesse sentido que a irreversibilidade do tempo nos proíbe de nunca modificá-lo como evento passado, e dir-se-ia também que todo o resultado aleatório é contingente no que ele poderia ser um outro. Mas, novamente, e nos dois casos, que se admita ou que se rejeite a propriedade do Número mallarmeano, ele não se singulariza em um resultado único que, à diferença de todos os  outros, manifestaria uma necessidade absoluta.” (MEILLASSOUX, 211:29, tradução minha, grifos meus). Todavia, bem antes da contagem de palavras realizada por Meillassoux, diversos comentadores já haviam insistido na importância do número 7 para se compreender o Lance de dados, recordando os antecedentes de sua aparição desde Igitur até o septuor do final do Sonnet en Yx de Mallarmé. Sem discordar por completo de Meillassoux, apresentarei aqui uma outra conjectura interpretativa a respeito do significado não arbitrário do número 7 no poema, uma hipótese que só posso julgar propriamente minha na medida em que, fundando-se na apreciação de elementos internos e exteriores ao texto, não a encontrei explicitamente enunciada em nenhum dos autores analisados por Thierry Roger no seu L’archive du Coup de dés.

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MALLARMÉ E O ENGENHO DO ENIGMA

Atribui-se a Pitágoras de Samos a sentença “tudo são números”. Essa fetichização do número pelos antigos, proveniente do contato com a matemática oriental, estimulou intrincadas elucubrações místicas sobre a vigência de ordens secretas subjacentes ao mundo visível. Ninguém menos que Aristóteles afirma, na Metafísica, que certos pitagóricos chegaram a criar uma tábua de propriedades significativas para os primeiros números naturais, na qual o 7 figura como correspondendo à oposição reto/curvo (MET. A, 985-986b8). O poema de Mallarmé de algum modo parece sofrer até hoje com as recidivas desse pitagorismo vago e residual em sua remota influência órfica. Talvez por isso, no lugar dos dados e da embarcação sob a tempestade presentes no poema, certos exegetas logo passaram a enxergar números de sílabas e padrões que guardariam algum arcano prestes a ser revelado pela decifração que reencontrasse a sua chave de leitura propositalmente ocultada. Assim, a copiosa produção de comentários sobre as questões formais presentes no Coup de dés surtiu um efeito quase natural de relegação a segundo plano da sua dimensão temática, isto é, do conteúdo mesmo do seu mote filosófico: a questão medular do acaso. Mas o acaso desse poema não se configura como uma simples alea presentificada no fatalismo probabilístico dos acontecimentos: ele se articula diretamente com a construção de uma futuridade  incongruente,  instaurada em algum sítio delicado e fugaz,  entre a confiança civil e a fé religiosa, entre a impossibilidade da esperança e a inutilidade do desespero, entre o colapso do grande arco histórico e as escassas migalhas da vida quotidiana –  entre a Revolução e o spleen baudelairiano. Trata-se portanto de um acaso que, em plena marcha hegeliana do Espírito Objetivo, começava a renegar as possibilidades de um triunfo da Razão.

A ambiciosa polifonia do poema sugere a adoção de uma alternância entre vozes fortes, medianas e sussurros, regulada por um código de modulação que graficamente se serve das mesmas técnicas de composição jornalística empregadas na trivialidade dos faits divers. Ao criticar a predominância da versificação alexandrina de 12 sílabas, essa inovação visual do Coup de dés abalava as ideias tradicionais de verso e ritmo, plasmando o poema em uma espécie de partitura de entonações elaborada segundo um expediente nitidamente composicional. Entre a pintura e a música, a exploração vocal desse esquema tipográfico foi brilhantemente interpretada no filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub Toute Révolution Est Un Coup De Dés, gravado em 1976 nos jardins do cemitério Père Lachaise, em Paris, sobre os restos mortais dos participantes da Comuna de 1871 (o filme está disponível no Youtube, com legendas em português e inglês).

O esmiuçamento analítico de um texto tão enigmático como o de Mallarmé pode conduzir a um panexplicativismo que sempre encontrará, por força e graça de coincidências obsessivamente encalçadas, alguma vinculação possível ou vagamente plausível para os seus fragmentos: a geometria do acaso (géométrie du hazard) de Pascal, a morte de deus de Nietzsche, a vida imprecisa do navigare necesse de Pessoa, a rejeição da métrica alexandrina pelos pós-simbolistas franceses, a crise da metafísica ocidental, as recorrências do 3, do 4 e do 12 em distintos textos do próprio Mallarmé, entre diversas outras presunções e ilações que buscam uma fuga desesperada do não-sistema desse texto a um só tempo sequestrador e sedutor. Ao cabo, tais tentativas só conseguem mesmo afrontar a ciosa dessemantização conquistada pelas fraturações sintáticas e pela ousadia gráfica que prenunciavam ab ovo, o sonhado livre a venir de Mallarmé, uma obra não simplesmente inacabada no terreno conclusivo de seu encerramento criativo, senão inacabável na essência mesma da sua concepção orgânica de uma linguagem vivente sobre um suporte à época ainda tecnicamente impossível, embora antecipável como possibilidade pensada.

A cosmogonia tipográfica de Mallarmé foi reivindicada pelos mais distintos e distantes partidos estéticos. Uns trataram-na como o suprassumo de um materialismo irredutível, outros, como um hermetismo rigidamente calculado, subproduto da agonia da poesia simbolista. E mesmo os que a viram como um dispositivo preponderantemente imagético, cuidaram de vê-la pelos registros mais distintos, bastando-se para tal conclusão que se aquilate a distância existente entre o conceito de imagem nas práxis poéticas dos simbolistas e dos concretistas, grupo este que se ocupou da mais importante onda de assimilação do Lance de Dados no Brasil. Mas o fato é que a crise de vers (crise de versos) de Mallarmé, o prolongado impasse de sua impotência criativa, também manifestava-se como um drástico abalo no funcionamento do regime emotivo do homem moderno,  processo literalmente sofrido por quem levava ao extremo a experiência discursiva de sua autorreflexividade. E o poeta parece ter procurado mergulhar esteticamente nessa crise sem ceder ao martírio diante da indeterminação ou sequer ao ímpeto supercontrolador que tomava o hasard como a inadmissível petulância de um efeito sem causa. Mallarmé dedicou-se a magnificar a figuração do acaso face à linguagem em um poema capaz de se manter em vigorosa reatualização, podendo concernir a coisas tão recentes como a viabilidade física do deslocamento temporal, a irrregularidade dos sistemas caóticos, a estimativa atuarial dos riscos e ainda a coisas peculiaríssimas como a nossa expressão “fazer uma fezinha”, isto é, tentar a sorte em um jogo de azar. Quiçá seja mesmo essa a maior virtude do seu poema: ter atingido, pela excelência de uma imbricação entre forma e fundo, o núcleo da universidade antropológica de um fenômeno misterioso capaz de alimentar uma perplexidade multifigurada em um repertório praticamente inexaurível de recorrências. Nesse desiderato, o caminho estético adotado por Mallarmé repeliu a trivialização da linguagem do dia a dia em seu tráfico utilitário de mensagens, buscando decididamente, inclusive contra a própria sintaxe, a voz que restaurasse à poesia a dimensão da nobreza quase sagrada de seu valor intrínseco. Leyla Perrone-Moisés comenta essa sua opção formal, tantas vezes confundida com uma eleição proposital da obscuridade: “Banalizada e desgastada no manuseio cotidiano, a linguagem perde seu valor-ouro e adquire um mero valor venal. Contaminadas pelas relações econômicas, todas as relações humanas, trocadas no miúdo da fala, se corrompem e se desgastam. A função do poeta moderno, assumida exemplarmente por Mallarmé, é opor-se a esse comércio aviltante, e propor a utopia das trocas linguageiras. Seu trabalho consiste em dar sentido mais puro às palavras da tribo, fazer com que elas, em vez de funcionar apenas como valores de representação da realidade, instaurem uma realidade de valor.” (PERRONE-MOISÉS, 2000: 32).

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A SORTE DO AZAR EM FLOR

A invenção dos dados confunde-se com o próprio nascimento da ludofilia. Na Índia, o Mahabarata os registrava sendo jogados, bem como, entre os gregos, Homero na sua Ilíada. Também egípcios, persas, etruscos e chineses já na Antiguidade lançavam os seus dados.  No seu De Ludis Grecorum, Suetônio testemunha que o imperador Augusto era um inveterado jogador de dados, considerando-os  uma invenção dos gregos atribuída por Pausânias ao herói mítico Palamedes. Porém, a origem mais remota da sorte determinada pelo acaso na queda de um objeto com faces marcadas por valores diferentes parece ser o jogo do osso, também chamado tava e até hoje praticado na Espanha e na bacia do Rio da Prata com um jarrete bovino, de apenas dois lados, ou com o astrágalo da pata de um carneiro, um osso quase perfeitamente cúbico. Tais jogos de origem imemorial, porque não dependem da destreza motora ou do engenho estratégico de seus praticantes, são comumente chamados de jogos de azar.

A palavra azar provém do árabe az-zahr, que tem dois significados: flordado – o cubo, não a informação. Ela deriva da metonímina de al-azahar ( الزهر ), a flor branca da laranjeira (Citrus aurantium) que entre os muçulmanos figurava como uma espécie de naipe assinalando o equivalente aos 6 pontos dos dados greco-romanos. Há também duas outras explicações, em geral menos aceitas, para a origem da palavra azar: cogita-se que ela proviria de yasara, vocábulo que nomeia o ato de jogar dados no árabe clássico, ou que ela se teria introduzido na cultura ocidental em meados do século XII, quando os cruzados tomaram o castelo de Az-Hard, na Síria, e lá encontraram o referido jogo sendo praticado por pagãos, tal como relata Guillaume de Tyr na sua crônica Gesta Francorum Ultra Maris. Em todo caso, isso não deixa de conter uma suprema ironia etimológica: na sua origem árabe, o azar exprimia justamente a melhor das sortes. Porém, como sabemos, nas línguas ibéricas, sobretudo no português, o azar paulatinamente confundiu-se com a mala suerte. E é bem provável que parte dessa sua grave carga negativa possa ser creditada à divina aversão dos reinos ibéricos ao azar do Alá dos muçulmanos, esse fortíssimo concorrente da providência cristã em tempos de Reconsquista. Por outro lado, observa-se que, em diversas línguas neolatinas, o azar significa uma pura alea destituída de negatividade: a fortuna, o acidente, o contingente, o randômico, a sorte, o destino, a sina, a sanha,  a chance, o errático, o fado, a sincronicidade, o esmo, o deus-dará, o tiquismo, a ventura.

A ocorrência do acaso fascinou Aristóteles a tal ponto que mereceu um tratamento especial na sua Física (195b31). Associada à noção de αὐτόματον (automaton, espontaneidade), o conceito de τύχη (týche, fortuna) foi desenvolvido após a doutrina das quatro causas. O estagirita acreditava que, sem ter ele mesmo uma causa determinável, o acaso não acontecia sempre nem frequentemente, revestindo-se de um caráter excepcional. E nem é preciso estar muito vigilante aos sinais de sua manifestação para notarmos que essa excepcionalidade quase sempre provoca um assombro capaz de suscitar dúvidas relacionadas à possibilidade de haver, para além da regularidade previsível que a ciência mensura, estipula e projeta, alguma ordem clandestina fazendo convergir o casual e o causal, o acaso e a causalidade. O acaso pode ser uma força benfazeja e abominável.  Ele produz não só a glória e o revés, como também governa o movimento de alternância entre eles. Na Idade Média ocidental, era a roda da fortuna, com seus seis raios, que melhor representava a movimentação desse ciclo no qual ninguém poderia intervir e cujo alcance a todos se estendia. Nos campos estritamente teológico e filosófico, uma investigação aprofundada sobre o nosso atual conceito de acaso não pode renunciar ao exame da pioneira doutrina moral das probabilitas, de Bartolomé de Medina, difundida pela Escola de Salamanca no século XVI. Em matéria de história social, esse mesmo mundo ibérico que execrou o azar também foi pródigo em regulações jurídicas sobre os jogos, inclusive os de dados. Bem antes dos dés de Mallarmé, qualquer marmelada que procurasse fraudar as lídimas manifestações do acaso nos jogos de azar foram severamente criminalizadas e punidas. Em 1266, Dom Dinis pôs em vigor em Portugal uma lei que condenava à morte quem no jogo “metesse alguns dados falsos ou chumbados”. E, em 1595, as Ordenações Filipinas determinaram “o açoite público com baraço e pregão e o degredo de dez anos para o Brasil” a quem fosse flagrado jogando com cartas ou dados falsificados. O extremado rigor dessas leis de antanho fornece a dimensão da importância moral que a preservação do acaso teve na distribuição das escassas chances (hoje diríamos, com Amartya Sen: oportunidades) em meios altamente desigualitários e regidos pela fixidez estamental.  A condenação capital, o açoite e o degredo, bem como a humilhante perda das roupas do próprio corpo, espreitavam quem removesse a venda do acaso que havia (e há) de permanecer completamente cego em sua estrutura eletiva, podendo assim melhor manifestar a sua vocação isonômica. Seguramente não é por outra razão que dizemos estar roubando aquele que trapaceia em um jogo de azar ou em um sorteio.

Qualquer percepção do acaso acaba por se tornar coextensiva à própria noção cultural de destino, uma ideia cuja representação psicológica, social e natural permanece profundamente enraizada na lógica associativa das estruturas metaforizantes que permite a sua enunciação abstrata. Um excelente contraponto ao nosso arcabouço ocidental do acaso pode ser buscado na mentalidade chinesa, que o simboliza por um pássaro pousando delicadamente em um galho. A própria palavra acaso constitui-se em chinês primariamente pela justaposição das ideias de (1) paridade, polaridade e dualidade (a exemplo do que significa o ideograma Öu, 偶) e de (2) liberdade imprevisível (invocada pelo voo do papa-figos, um pássaro de plumagem negra e amarela representado pelo ideograma Peng, 莺). Aérea, pressagiosa e elegante, tal noção de acaso difere essencialmente da nossa, que se conserva assinalada por um certo mal-estar face à ausência de uma ordem causal perfeitamente explicável. O acaso para os chineses exprime, antes de tudo, a conformidade resignada com uma determinação inapelável mas sempre mutável, a mensagem vinda dos céus em um contexto situacional de possibilidades arquetípicas, à semelhança do que ocorre no uso oracular do I Ching, que figura o caráter contingente dos acontecimentos mais pelas moedas e varetas lançadas em pleno ar do que propriamente em suas quedas definidoras. Ante esse contraste, nota-se que Mallarmé persegue um outro ideal contrafático em seu ponto de vista sobre o acaso, articulando-o pela vinculação de um resultado (o lance lançado)  ao binômio alegórico mar-acaso /céu-necessidade.

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O MAPA DO LABIRINTO

Entre a intencionalidade diretiva do escritor e a liberdade interpretativa do leitor, qualquer poema escrito conduz sempre a uma leitura possível, isto é, passível de alguma intervenção do acaso, seja o acaso daquelas acepções vocabulares que escaparam ao desejo significante do autor, seja aquele outro, da conjuntura mais pragmática do contexto concreto de sua recepção. Em Un Coup de dés, Mallarmé dispunha-se não somente a invocar, senão também a assumir uma delicada posição a propósito dessa estranha natureza do hasard. Dispunha-se, portanto, além de falar dele, a também usá-lo como recurso expressivo. E ele fez isso de dois modos: (1) com versos que explicitamente tematizam o acaso, e com (2) uma inovação visual cuidadosamente conjugada a uma escrita que valoriza vozes e pausas sugeridas por fontes tipográficas de variadas formas e por generosas porções de papel em branco na sua disposição. A fabulosa interação aí ocorrida entre o mote do acaso e a distribuição espacial das palavras é ainda catalisada pelo caráter excêntrico e cortante da uma sintaxe que, segundo o próprio Mallarmé, evita o récit (a narração) e adota o raccourci (o atalho). No caminho multielíptico dessa composição feita de muitas vozes,  pinceladas e atalhos mentais, o in folio das folhas fixas e suas faces, as páginas duplas, quase se embaralham como cartas. O modo e o lugar por onde no texto se entra e se percorre o seu(s) sentido(s) alteram-se substancialmente, liberando o escrutínio do leitor para uma plêiade de trajetos e efeitos coalescentes já distantes daquela ortodoxa leitura possível quista, aceita ou meramente sugerida pelas linhas terminando nas margens ou pela quebra dos versos que definem a silhueta de um poema em sua mancha gráfica regular. Mallarmé não é apenas o mestre indiscutível do ciframento astuto, é também o senhor da instauração de uma ordem sub-reptícia de sugestões que se deleita em ser refratária à enunciação predicativa mais direta e comezinha. O seu poema não mobiliza ordinariamente as cadeias sintagmáticas com propósitos comunicativos: ele transmuta o enjambement em uma ferramenta anômala de associações conotativas que, de tão insólitas e inquietantes, tornam-se mais assimiláveis do que propriamente explicáveis, provocando efeitos de dificílima tradução metadiscursiva. Também pudera: para Mallarmé a poesia trata antes de tudo do verso “[…] que de vários vocábulos refaz um termo total, novo, estrangeiro à língua e como que encantatório […] negando, com um traço soberano, o acaso alojado nas palavras […]” (Mallarmé: 2003, 260). Logo, é na direção dessa busca de uma singularidade que nega o acaso que se deve perceber os desdobramentos de sua célebre crise de vers: não como um simples esgotamento da unidade compositiva da métrica do verso alexandrino no bloco estrófico, mas como uma perturbação do discurso natural produzida graças ao seu assalto disruptivo por uma linguagem poética que é, entretanto, sentida como carecedora de um lugar digno no contexto social da Modernidade. Impotente diante dessa circunstância inóspita, e mesmo descrente da sua possibilidade de modificação, Mallarmé recolhe-se mas segue adiante com o seu projeto estético. Para ele, negar o acaso alojado nas palavras importava empregar a linguagem em uma dimensão que, ao menos em parte, se diria hoje fenomenológica, isto é, capaz de (re)produzir o estranhamento arrebatador com o que desde sempre esteve aí, de onde as ideias da surpresa e do assalto, primas próximas do tauma, o espanto filosófico. A elaborada consciência crítica do caráter altamente planejado desse assalto atinge em Mallarmé requintes que não se limitam ao preciosismo visual ou à dificuldade da sua escrita: ela alcança ainda posições sobre o próprio mercado editorial e livreiro, pois esse professor de inglês tinha uma personalidade muito mais insolente, irônica e bem humorada do que fazia supor a caricatura de sua nem tão pacata discrição. Poeta em greve, ele foi entusiasta de Zola e defensor de Dreyfus, teve flertes com o anarquismo e chegou a frequentar as sopas populares oferecidas por esses militantes a hordas de famintos em seus comícios. Contudo o seu tempo era, talvez como o de agora, o da decepção com a política, o do fracasso e o do sufocamento das revoltas e das revoluções, um período intersticial de ausência dos requisitos orgânicos para uma ampla refundação da cultura, o que o situa como o personagem singular de um drama desiludido, mas de modo algum o explica como um autor que ajudasse a constituir esse mesmo tempo no qual, em retrospecto, hoje vemos a sua tendência aristocratizante como um gesto de repulsa à modorrenta vulgaridade burguesa.

Ao empregar a língua dos símbolos e ao promover a alternância entre a algazarra e o cochicho evocativos de significantes que habitam a nebulosa periferia dos núcleos semânticos mais resplandecentes, Mallarmé evita a nomeação das coisas e alcança a gramática da temporalidade, atingindo o fenômeno da duração e contemplando o seu engendramento pelas variadas velocidades articulatórias estabelecidas entre a labilidade da impermanência e a incerteza da consumação. É assim que a hesitação do seu lance de dados captura as dilações que sustêm os lapsos gerúndios e subjuntivos dos enquantos que instauram movimentos marcados por diferentes cadências rítmicas: o relâmpago do arremesso ao resultado, a suave errância da pluma que paira, o vórtice voraz do abismo que traga, o destino incerto do contramestre (maître d’équipage) que naufraga em um mar noturno recoberto por um manto de estrelas. Outrossim, essa aludida pluma que paira talvez ensaie uma investida da sereia contra a musa, um movimento radical de substituição do pathos emotivo da poesia pelo canto póstero desta criatura que de uma rabanada só aniquila a rocha que ameaça a integridade do navio e refunda a sua condição mítica sem deixar de permanecer tenebrosa. Afora a evocação do alardeado elemento principesco e hamletiano no caráter relativamente errático e quiçá trágico da linguagem, a presença dessa pluma pode aconselhar um rechaço à inspiração insuflada pelas musas, as mesmas que, vencendo as sereias em um desafio de canto, provocaram o seu exílio. À diferença do sensualismo feminil e aquático que domina a feição moderna dessas figuras mitológicas, não é demais recordar que, para os gregos da Odisseia, as sereias eram entidades malévolas e aladas, constituídas pela fusão entre um corpo de ave e um rosto de mulher, seres cuja origem sincrética possivelmente se encontre nos ritos fúnebres egípcios. Vivendo sobre os rochedos recifais e costeiros – formações por si só temíveis por qualquer embarcação -, elas de lá arremetem para aliciar os navegantes com o seu canto e conduzi-los à fatal desorientação. Para Rancière, a natureza quimérica da sereia no Coup de dés metaforiza “ce que le poème effectue, c’est alors très précisément l’événement et le risque calculés du poème dans une époque et un ‘milieu mental’ non encore prêts à les accueillir.” (RANCIÈRE, 1996:25). Mas e se para potencializar essa metaforização, Mallarmé já contasse com um leitor disposto a também divisar, em sua criatura de escamas bifurcadas, o acossamento de Ulisses amarrado ao mastro de seu navio, com os ouvidos preenchidos por cera de abelha, tal como se vê abaixo em um vaso grego do século V a.C? E se, para captar e eternizar a voz letal dessa sereia, o poeta ousasse se valer, à guisa de instrumento escritural, de uma pena oriunda da sua própria plumagem, redobrando assim o emblema da perturbação do Maître que sucumbe ao naufrágio? Como quase tudo nesse poema, a questão da sereia, explicitamente escamada ou alusivamente plumosa, é logo devolvida ao reino enevoado das hipóteses especulativas que se confundem e se sobrepõem, restando como única certeza, após a sua aparição, a retomada, na próxima dupla de páginas, do tema do Número (LE NOMBRE) como “issue stellaire”.

Com uma engenharia de interpolações altamente planificada, o Coup de dés inaugurou um dispositivo retrorremissivo que, apesar da sua dedálica dinâmica interna, nunca deixa de apontar para universos referenciais passíveis de atualizações virtualmente infinitas, convidando os futuros interessados (“l’ultérieur démon immémorial”?) ao estabelecimento de elos inusitados capazes de saltar sobre a encadernação da obra e desapassivar o leitor de sua condição meramente receptiva, investindo-o dos mais legítimos poderes hermenêuticos na determinação circunstancial de um significado que só se consumará mediante o concurso de uma dedicada interpretação construtiva. Porém, esse entendimento de Mallarmé acerca das interações entre (1) uma intencionalidade densamente projetada e (2) as suas múltiplas possibilidades combinatórias fez muitos acreditarem que ele simplesmente fosse um entusiasta das experiências com o acaso, que ele só estivesse a jogar com a imprevisibilidade das cargas idiossincráticas de um leitor remoto. Em realidade, a sua perspectiva de composição poética almejava coisa bem mais audaciosa: em vez de controlar completamente o resultado de uma leitura certa, ele pretendia capturar o acaso por um abalo à multimilenar metáfora do texto concebido como um fio contínuo. Resulta disso em Mallarmé um hasard aberto às novas costuras combinatórias de um artesanato visual e redacional que já fornecia pistas de uma concepção revolucionária de percurso de leitura. Exatamente por esse motivo, Mallarmé é apontado pelos especialistas em ciências da informação como um dos precursores do hipertexto, esse caminho labiríntico de múltiplas conexões entre documentos que não têm propriamente nem começo nem fim, estabelecendo-se antes como um mosaico de opções conectivas percorridas por variados interesses e atenções governantes. Por suas muitas vias de ingresso e trajetos possíveis, o Coup de Dés ainda pode ser considerado uma antecipação da chamada engenharia de documentos, disciplina que projeta acessos, retornos, atalhos, caixas e janelas de derivações entre suportes informacionais conexos, uma prática hoje largamente facilitada pela tecnologia digital mas que, a bem da verdade,  remonta à indexação organizada alfabeticamente pela Souda, a enciclopédia bizantina do século X, que possuía 30.000 entradas de fácil acesso e que seria posteriormente utilizada como modelo de índice remissivo por Diderot e D’Alembert. Na era do hipertexto que sucedeu o mito estruturalista da morte do autor, o projeto artístico e mesmo cognitivo de dar voz à linguagem parece corroborar o arrefecimento de uma autoria unipessoal e nominal que aos poucos cede o lugar e a vez a uma crescente incrustação de glosas e críticas. E estas, por seu turno, gradualmente tendem a superar e suplantar em volume o próprio texto principal, incrementando um caos entrópico contra o qual o leitor, o consulente ou o comentador devem se precaver municiando-se de alguma questão portadora de intencionalidade seletiva. No lugar do fio de Ariadne abandonado com a própria linearidade discursiva, reclama-se agora um mapa desse labirinto polifônico amplificado por ecos de vias informativas. O Coup de dés está então duplamente implicado nesse processo: enquanto inaugura a legibilidade não linear, é devorado pelos comentários (como esse aqui) que supersaturam a sua compreensão.

A fim de renovar os embaraços interpretativos, proponho agora um exercício hermenêutico que também levará em consideração o dado como um objeto aquém do seu símbolo, procurando demonstrar de que modo uma importante característica sua vem sendo possivelmente ignorada na apreciação do significado não arbitrário do número 7 presente no poema.

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REVENDO DE PERTO OS DADOS

Apesar da descomunal massa de comentários sobre o Coup de dés, e mesmo a despeito de toda a sua eloquência formal, sempre acreditei que o poema de Mallarmé no fundo discutisse a tensão entre a força de uma vontade expectante e a esmagadora indiferença do acaso. Em 2004 fiz um pequeno poema que sugeria a seguinte falsa tradução para o verso Un coup de dés jamais n’abolira le hasard: “puras expectativas não demovem adventos invindos”. O axioma um lance de dados jamais abolirá o acaso continuamente infundia-me o entendimento de que a simples vontade humana – da crença ao desejo, passando-se pela fé e a expectativa – não era causa eficiente nem suficiente para atuar sobre o devir, tornando-se impotente para precipitar um resultado. Ora, se lanço dados esperando a melhor sorte, tal como o 6 ou a própria flor de laranjeira, absolutamente nada me garante que o cubo não vá cair com a sua face superior marcando o singelo 1 ou qualquer outro número distinto daquele aguardado. Entretanto, ninguém lança dados em uma competição pelo número ou por outro símbolo que represente um valor mais elevado desejando com firmeza qualquer resultado. Hierarquia ou distinção submetida à aleatoriedade é o postulado intrínseco admitido até por quem, mesmo sozinho, testa a própria sorte ao displicentemente brincar com um dado, o que seria naturalmente impossível com uma bola de gude ou com um cubo de faces completamente idênticas. Durante um jogo de dados, parece então subsistir algum tipo de aceitação tácita ou inconsciente de que a esperança possa provocar o êxito da sorte desejada. Enxergo no uso perspicaz, por Mallarmé, desse elemento psicológico próprio à capacidade projetiva e antecipadora da consciência humana um formidável contraponto a todo o monumento esfíngico aparentemente erigido só ao caráter fortuito de uma vida que se percebe insignificante e efêmera, regida pelo destino inapelável de uma finitude que se derrama no próprio branco da página, no nada, essa deidade suprema de uma precoce metafísica sem transcendência, apurada pela habilidosa aproximação entre o absurdo e o absoluto.

Un coup de dés jamais n’abolira le hasard: já que qualquer lance de dados não só confirma como até mesmo representa o próprio acaso, parece em princípio indiscutível que com a negação composta jamais n’abolira Mallarmé pretendesse robustecer a peremptoriedade do jamais. Sendo normal em francês tal construção negativa do leitmotiv do poema, é natural traduzi-la em português por um lance de dados jamais abolirá o acaso, com o evidente sacrifício do não e da circularidade tautológica que tende a se desvanecer na impossibilidade de consideração do que se estabelece no original entre dés (dados em francês) e hasard (az-zahr, dado em árabe). De modo bem próximo, Octavio Paz verteu para o espanhol esse verso pela fórmula “Una tirada de dados jamás abolirá el azar”. Deslocando a posição sintática do advérbio, poderia inclusive conservar a dupla negativa ao adotar a tradução Um lance de dados não abolirá jamais o acaso, reintroduzindo-se assim o não. Essa escolha, entretanto, acarretaria imensos problemas na ordem de alocação das palavras que prolongam uma proposição distribuída por diferentes páginas e intercalada por outras vozes com ela dialogantes: o poema efetivamente precisa começar com o jamais antes do abolirá. Na sua tradução de 1975, Haroldo de Campos retrilha o caminho encontrado pelas versões em inglês e alemão, que repetem os advérbios never neverniemals niemals: “um lance de dados jamais jamais abolirá o acaso. (CAMPOS, 1975). Uma torrencial abonação gramatical reitera que o ne+pas pode ser tranquilamente substituído por ne+jamais, atribuindo-se a efetividade da carga negativa ao jamais e um caráter meramente expletivo ao ne, cuja elisão diversas traduções adotam. Sem recusar que essa acepção dominante das palavras de Mallarmé corresponda à sua intencionalidade primeira e principal (mas não única) no plano da obra, recordo que diversos especialistas observaram que o constante recurso do poeta à dupla negação  é algo impossível de ser qualificado como um puro capricho de seu estilo. Trata-se, bem antes disso, de uma escolha explicitamente desestabilizadora, orientada a fissurar as certezas enunciativas ao investi-las de uma carga dubitativa tão pesada que a sua indecidibilidade só encontra algum fluxo expressivo em pares oponíveis e opcionais, dentre os quais o autor tantas vezes cautelosamente ainda se furta a escolher. Analisando esse engenhoso expediente de recusa do real, Sonia Assa cogita que ele provenha do negacionismo de uma dialética hegeliana destituída do seu momento de síntese superadora (ASSA, 1984:122).  Desse modo, à perplexidade titubeante do personagem que retém os dados, agrega-se um ricochete especular entre três cargas negativas: a do não, a do jamais (nunca) e a do abolir (anular), capaz de colocar em estado de desconfiada apreensão quem se depare com a sentença que singelamente afirma o truísmo de que um lance de dados jamais abolirá o acaso. Todavia, seja em estado dinâmico (durante o arremesso ou já no próprio rolar dos dados sobre uma superfície), seja em estado estático (na parada final que apura um resultado), os dados continuam representando a própria imprevisão do acaso. Transposto para uma versão afirmativa e mais clara, o conteúdo desse verso tutelar diz então que um lance de dados sempre manterá o acaso, formulação essa que insinua as seguintes indagações: mas propriamente contra o que esse lance de dados manterá esse acaso? Que força abolitiva ou determinista o ameaça?

Ajuizando a cisma do autor pelas negações e a sua aferrada resistência ao senso mais comum da sintaxe, a questão, apreciada desde a perspectiva dos seus postulados, sutilmente logo se encaminha para um enfrentamento entre o acaso e a necessidade. E é aí que Mallarmé manifesta toda sua perícia na edificação da paradoxalidade do poema: das trevas de uma obscura obviedade ele logra extrair um provocante claro enigma. Servindo-se de um arguto poder sugestivo, ele arquitetou, para além de sua aparente banalidade, um verso capaz de ao mesmo tempo afirmar e sub-repticiamente questionar as forças da indeterminação. E acredito que ele tenha feito isso em consonância com uma propriedade constituinte (mas não estocástica) desses prosaicos cubos de lados numerados que passo a comentar. Analiso aqui o sentido de duas passagens entrecortadas por derivas e digressões: “o único Número que não pode ser um outro” (l’unique Nombre qui ne peut pas être un autre) e “na direção desse deve ser o Setentrião também Norte” (vers ce doit être Le Septentrion aussi Nord). Inicialmente vislumbro na articulação entre esses versos dois elementos que se aproximam de um ponto de vista partidário da determinação: o primeiro, chegando mesmo a indicar uma necessidade; o segundo, sugerindo a detecção de uma legalidade deôntica, identificável pela estrutura do deve ser associada a uma inclinação que não manifesta somente uma tendência, mas já algo que parece deslocar-se em um plano instável obedecendo à lei da gravidade. De mais a mais, no poema as palavras declividade (declivité) e obliquidade (obliquité) reclamam uma poderosa energia direcionante e talvez se refiram à instabilidade do próprio convés da embarcação responsável por um movimento inelutável e intimamente ordenado pela verticalidade que espacial e cineticamente orienta toda a ação transcorrida entre o abismo e o firmamento – firmamento onde se exceptua ao nada (RIEN) uma constelação (UNE CONSTELLATION) que, mesmo fria de oblívio e dessuetude, sideralmente enumera, sobre alguma superfície vacante e superior, um cômputo (compte) total em formação (parafraseio em tradução livre, alguns versos finais do poema, MALLARMÉ, 2003:441).

Sem pretender recompor toda uma tradução prenhe de filigranas, quero retomar esse elemento controverso do Lance de dados que tem posto a correr rios de tinta sobre o seu sentido misterioso: o Setentrião presente no verso “o Setentrião também Norte” (Le Septentrion aussi Nord). Ao notar que Ulisses já navegava orientado pela Ursa, em seu ilustrado e polêmico Les Phéniciens et l’Odyssée, Victor Bérard esclarece que “Dès les temps homériques, l’Ourse avait déjà un double non qui, peut-être, suppose la reencontre de deux théories astronomiques ou, tout au moins, de deux ‘vues d’astres’ et de deux comparaisons. Elle gardera ces deux noms, durant toute l’antiquité et jusqu’à nos jours: ele est bien l’Ourse, mais elle est aussi le Chariot, et son compagnon est le Gardeur d’Ours, Αρκτοφυλαξ, mais aussi le Meneur de Boeufs, Βοώτης, car le Chariot est un Char à Boeufs, un char à Sept Boeufs, Septemtriones.” (BÉRARD, 1927:280). Acredito que a referência de Mallarmé ao Setentrião encerre algo além de uma mera alusão às sete estrelas que compõem o nome latino da constelação da Ursa Maior, uma representação cardial do Polo Norte alçada à condição de fonte emanadora de um dever ser cuja natureza, embora desconhecida, reveste-se de uma grande potência física e retórica. Quando o poeta diz “também Norte” (aussi Nord), imediatamente suspeito sobre o que mais, ou até mesmo o que antes, para aquém ou além desse Norte, o Setentrião poderá ser ou significar. Em sua discreta inscrição do número sete (sept em francês, septem, em latim), penso que o Setentrião guarde o verdadeiro posicionamento de Mallarmé em relação ao acaso e à (in)determinação no lance de dados. E afirmo isso pelas seguintes razões que passam a se servir de fragmentos do próprio Coup de dés: o resultado inescapável de qualquer lance de dados, o “cômputo” (compte) que se forma “pela evidência da soma” (évidence de la somme)  de qualquer de suas faces opostas (no caso a superior e a inferior, mas forçosamente também as suas laterais) é sempre sete. Creio assim que os soberanos sete pontos luminosos do Setentrião vinculam-se diretamente ao “único número que não pode ser um outro” (l’unique Nombre qui ne peut pas être un autre), pois, seja qual for o resultado obtido em um lance de dados,  sempre, e necessariamente, o cômputo final, pela evidência da soma, resultará em 7, haja vista que, desde a mais remota antiguidade indiana, todo e qualquer dado cúbico e  numerado tem o seu lado 1 oposto ao 6, o 2 ao 5 e o 3 ao 4, tornando-se permanente e invariável a equalização desse somatório:  1+6 = 2+5 = 3+4 = 7. Entretanto, não cheguei por mim mesmo à dedução da cogência dessa propriedade natural dos dados. Ela me foi apresentada, em meados de 2011, no Rio de Janeiro, por um jogador que se declarava compulsivo, não por acaso um marinheiro aposentado, que com outros coetâneos seus reunia-se na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, para juntos praticarem o general, o xadrez, o dominó, o jogo de damas e sobretudo o carteado. Dada a ausência de cassinos na cidade, eu havia passado a frequentar aquela praça com o propósito quase etnográfico de observar jogadores reais para escrever o poema que se encontra ao final desse ensaio (OS DADOS DE DEUS). Esse senhor octogenário lá então me disse que a tal coincidência do resultado da soma em 7 das faces opostas de um dado é largamente conhecida por jogadores contumazes, que frequentemente se servem dela em truques de simulação divinatória. Aliás, foi somente após três experimentos bem sucedidos de adivinhação com os seus dados que, vencida certa recalcitrância, ele acedeu em revelar-me o segredo de seu procedimento. Eu que já vinha há semanas relendo o Coup de dés e uma extensa bibliografia crítica para compor o meu poema, fiquei imediatamente convencido de que Mallarmé havia incorporado essa propriedade ludológica no seu texto, cuidando de ocultá-la no resultado da soma desse único Número que não pode ser um outro e deixando-a latente no cômputo do número sete do Setentrião, o núcleo altaneiro e soberano de uma invariância elevada à estatura cósmica em pleno reino da contingência, algo que lhe permitiu explorar o  caráter aporético de um lance de dados que doravante se tornaria simultaneamente imprevisível e determinado, variável em sua face superior e constante na sua adição vigente e inabolível.

Com efeito, a detecção da natureza irresolúvel do paradoxo desse acaso concomitantemente abolido e inabolível, o alcance da tomada de posição, digamos, filosófica do autor a seu respeito, reclama um empenho interpretativo disposto a reconstituir outro texto de Mallarmé que não chega a ser tão judiciosamente ponderado em suas minúcias. Falo aqui da passagem intitulada Le Coup de dés presente em Igitur ou La Folie d’Elbehnon. Vinculando-se ao poema Lance de dados como um nítido precedente seu, essa obra é composta de esboços preparatórios que o poeta pretendia manter inéditos. Em Igitur, ao tratar do Absoluto e do Infinito, Mallarmé toca ao menos sete vezes na negação do acaso pela Ideia, revelando uma verdadeira obsessão por esse topos capaz de amainar os traços da sua própria dicção autoral e de estabelecer o seu pertencimento a uma genealogia (uma raça) de autores míticos votados à tarefa da revelação órfica do mundo. Soa a Meia-noite e Igitur desce as escadas do espírito humano até o Absoluto. Um ambiente sombrio e austero, de cinzas neutras, despojadas de sentimentos. É a ocasião de serem lançados os lados e Mallarmé logo de início acomete contra as ciências: “Sifflements dans l’escalier. « Vous avez tort » nulle émotion. L’infini sort du hasard, que vous avez nié. Vous, mathématiciens expirâtes — moi projeté absolu. Devais finir en Infini. Simplement parole et geste.” (MALLARMÉ, 2003:26). Desde aquela época preparatória, o programa mallarmeano de erradicação dos traços de uma afetação lírica (ele declara em uma carta a Henri Cazalis de 1866: “Je suis parfaitement mort.”) desdobrava-se para o terreno de uma ambiguidade que cessa de ser experimentada como simples angústia pela imprecisão semântica e passa a figurar como parte irrenunciável de um ousado projeto de diluição do subjetivismo da recepção textual em um exercício de comunhão quase coautoral. Comentando as suas traduções de Poe, Mallarmé afirma que “Tout hasard doit être banni de l’œuvre moderne et ne peut être que feint […]” (Le Corbeau, Scolies, p. 229). Essa sua apreciação favorável ao banimento do acaso e de sua assunção exclusivamente fingida ou fictícia também apregoava um elogio à vontade criadora e direcionante do artista sustentada como um contrassenso: ela é obrigatoriamente possível. Na sua Carta Autobiográfica a Verlaine (1885), ele chega declarar a sua predileção por um livro “[…] architectural et prémédité, et non un recueil des inspirations de hazard, fussent-elles merveilleuses…”. (MALLARMÉ: 2003, 392). Na referida carta a Henri Cazalis, o poeta emprega a expressão “creuser le vers”: cavar o verso (MALLARMÉ, 2003: 297). Essa sua escavação, ele mesmo revela, o conduziria à fossa fúnebre do coveiro e a um vazio muito semelhante ao nada do budismo que ele dizia desconhecer, duas experiências limítrofes capazes de precipitar a eclosão de sua última e mais complexa fase criativa, determinada pela rejeição a qualquer deus e pela procura de uma expressão radical para sua aflita negatividade. Quereria ele ainda indicar com esse escavamento do verso a dimensão de uma espessura que o biplano da página estampada, mesmo dupla, não dispunha para as suas estripulias? Ou metaforicamente estaria a sugerir a procura da poesia no garimpo exaustivo de suas singularidades sintática, semântica, acústica, mitológica e visual? Ou ainda todas essas coisas juntas? Não há como saber. De talvez em talvez, chega-se a uma longa e cada vez mais frágil cadeia de provavelmentes temerários que eu mesmo cá estou a alimentar. Durante o século XX, os despojos de Mallarmé foram inicialmente sepultados no mausoléu da despolitização estética como o cadáver abjeto de um hermetismo formalista. Mas não tardaria para que logo ele fosse exumado e disputado pelas matilhas vanguardistas que morderam e rosnaram para elevarem a sua voz à condição de profecia anunciadora dos mais pujantes arrojos experimentais. Só agora, no século XXI, pouco a pouco a obra mallarmeana começa a se desvencilhar das marcas tardias desses epígonos e ser lida em consonância com a sua acurada prosa crítica e teórica. Ao se libertar dos rótulos que lhe foram apostos à sua revelia, a garrafa de Mallarmé, agora bem mais transparente, segue flutuando pelo mar com a mensagem dos dados em seu interior e sob o olhar perscrutante do voo das duas aves que sempre lhe foram caras: o corvo de Poe e o albatroz de Baudelaire.

O triunfo de Un Coup de Dés não se deve apenas a um conseguimento maneirista compensável por leituras coesoras que no fundo permanecem incomodadas com a sua índole fragmentária. Tampouco a pretensão desse poema se esgota no experimento de um joguete permutacional que se compraz em veicular alguma charada composta em versos esquisitos. A dialética estabelecida entre o acaso e a necessidade em Mallarmé repensa e repõe tópicos sobre o destino e a vida que desde as Moiras e do kairós dos gregos inquietam a literatura e o pensamento ocidentais. E nisso não poderia lhe faltar uma excelsa e bizarra dimensão religiosa. Os vanguardistas do século XX preferiram comodamente esquecer que Mallarmé esteve inclusive muito interessado na missa católica como oficiamento celebratório de uma palavra que opera a troca da representação pela pura presença, tal como se dá nos momentos da eucaristia (o comparecimento de Cristo-Deus pela transubstanciação do pão e do vinho em seu corpo e sangue) e no anúncio da parúsia (a segunda vinda de Cristo ao mundo). Para Mallarmé, esses eram modos de pensar a presença na ausência envolvida em um sentimento de expectação adventícia que dispensava o caráter virtual e supletivo inerente às representações pela linguagem tradicional. Não lhe era mais suficiente uma poesia que falasse da coisa, ele desejava outra, mais potente, que já fosse ela própria essa coisa feita de um verbo sublimado de sua função meramente veicular. Acreditando na incorporação de certos elementos da missa católica à mimese teatral, ele pensava em explorar os efeitos empáticos da música, especialmente a wagneriana, sobre o público dessa novíssima arte poética. Mallarmé imaginou para a poesia um autêntico rito laico de comunhão abstrata que lidasse tanto com o vazio deixado pelo branco da página como também com o espaço do drama que realçasse a palavra dita e ouvida sem distrações com a performance da orquestra (lembro que em 1876 Richard Wagner inaugurou o seu teatro em Bayreuth, no qual os músicos, situados em um fosso antes do proscênio, desapareciam completamente da vista do público). A página mallarmeana é de fato concebida como o negativo de um céu noturno no qual a tinta escura escreve por entre generosas porções de vazio claro, longos intervalos de silêncios meditativos alternados por vozes não vernaculares, como os da missa tridentina. Do culto à ópera, Mallarmé preocupava-se com novas tecnologias intelectuais e estéticas para a celebração da presença mediante a palavra encarnada no livro do futuro. E muito embora possa parecer altamente ritualizada, a poesia era, para Mallarmé, uma religião sem deus nem credo, uma experiência que acreditava ser realmente capaz de fundar um novo espírito comunitário. Após o seu Mallarmé: La Politique de la Sirène, Jacques Rancière assevera que com “[…] as antigas pompas da religião e da monarquia, perdem-se também as formas tradicionais de simbolização de uma grandeza comum. E o problema consiste em substituí-las para dar à comunidade seu selo.” (Rancière, 2012: 106). Conservar essa grandeza da experiência da comunhão humana estabelecida pela linguagem sem chancelar vetustos códigos representativos foi o desafio delicadíssimo assumido pelo poeta ao abordar as forças (sobre)naturais de um acaso confrontado pelo absoluto e pela necessidade encarnados em sua concepção de linguagem. Isso exigia nada menos do que a disposição para inventar um novo mito, tarefa na qual ele parecer ter alcançado imenso êxito. Aqui, portanto, evito exaltar mais uma vez a simples presença abstrata do número 7 no poema, procurando antes demonstrar qual o seu possível sentido não arbitrário. Eis mais uma razão para que se redobre a cautela com as interpretações místicas, numerológicas, ocultistas e cabalizantes orientadas a revelar algo que em diversos tempos e culturas impregnou o número 7 dos mais variados significados. Sete são as maravilhas do mundo antigo, os pecados capitais, os sábios da Grécia, as portas de Tebas, as virtudes cardeais, os mares do mundo, as artes liberais, as notas musicais, as cores do arco íris, os dons do espírito santo, as hastes do menorá, os dias da criação, as esferas de Ptolomeu, os céus do Islã, as cordas da lira e o próprio 7 é mencionado 77 vezes na Bíblia, além de ser também 7 o número do cromossomo no qual se aloja o FOXP2, o dito gene da linguagem.  Mas, para além de tudo isso, na economia do Coup de dés, creio que o 7 seja o resultado da soma dos lados opostos de um dado: o único Número que não pode ser um outro, a abolição do acaso no reino da contingência, a brutal indiferença da regularidade celeste aos acidentes, talvez fatais,  da vida humana, a conciliação entre o panta rei do devir heraclítico e a imutabilidade parmenidiana da eterna permanência do ser que é pura subsistência sem vir a ser.

Teria essa fina percepção do acaso mallarmeano sido, ela mesma, um fruto do mero acaso?  Em função de seu caráter altamente requintado, creio que muito dificilmente. Imagino que seja mais sensato também atribuí-la aos diversos acúmulos que a sua época propiciava. Embora avesso à ciência e de certo modo até procurasse rivalizar com as suas conquistas, Mallarmé seguramente não tinha como ignorar o impacto das pesquisas em probabilística e aleatoriedade desenvolvidas por Johann Gauss, o dito Príncipe da Matemática, que chegou por um breve período a ser seu contemporâneo. A publicação do Coup de dés ocorreu no fatídico ano de afirmação da física moderna e das condições técnicas dos meios de comunicação de massa. Durante 1897, Marconi fez a primeira transmissão de rádio e Thompson comprovou a existência do elétron num tubo de raios catódicos, aparelho que originaria o monitor da nossa futura televisão. Em fins do século XIX, os últimos detritos das forças plenipotenciárias da providência divina foram definitivamente substituídos pelas leis da natureza, fontes entusiásticas de certeza e previsibilidade que, por sua vez, logo cederiam espaço à assimilação dos fenômenos da imponderabilidade e da indeterminação. Curiosamente, essa reversão de posições no mundo da ciência outra vez encontraria nos dados um signo maior para a figuração do acaso. Legatário e crítico da tradição newtoniana, até mesmo o gênio de Einstein se equivocaria ao censurar a originalíssima concepção da mecânica quântica de Bohr e Heisenberg a respeito da indeterminação no posicionamento dos elétrons em um átomo cuja eletrosfera passava a ser compreendida segundo o modelo da nuvem de probabilidades. Ao rebater a concepção de seus adversários, inclusive o Princípio da Incerteza, de Werner Heisenberg, voltado a explicar a dualidade onda-partícula dos fótons, Einstein arriscou uma sentença lapidar: “Deus não joga dados com o universo.” E parece ter errado feio. Ao lado de novas e sutis causalidades, a incorporação do irregular, do caótico e do imponderável, bem como suas preservações dos ímpetos superdeterministas, se tornariam vitais à mentalidade cética do homem contemporâneo, a tal ponto que chegaram a ensejar, desde o final do século XX, caricatas doutrinas formadas pelo indigesto arranjo entre religiões orientais e clichês generalistas de divulgação científica. A reabilitação natural e moral do acaso fomentou um contrafluxo ao determinismo positivista obcecado pela inexorabilidade de suas leis, tais como as de Darwin ou de Marx, mas também como as das obsessões formais de diversas escolas literárias. No apagar das luzes do século XIX, entre a causalidade que tudo previa e o caos do acaso que tudo aceitava, o espaço do poema passava a se desenhar em Mallarmé como um âmbito de densa liberdade capaz de pioneiramente comportar a ambos, abrindo-se para e pelas possibilidades estipuladas por uma criação que endereçava convites a rotas de participação em algo estritamente planejado.

As alterações já na prova tipográfica de uma das variantes do poema demonstram que a redação inicialmente escolhida por Mallarmé para o seu verso tutelar principiava com um rotundo jamais: “Jamais un coup de dés n’abolira le hasard.” (reprodução do original acima).  Jamais: nunca, por nenhuma vez, sequer por uma ocasião em uma série de ocorrências ao menos pressupostas como potencialmente dignas de acontecimento. Jamais: estratagema que supõe e ex abrupto nega seguimento por completo a uma sucessão. No Coup de dés, o advérbio jamais envolve o sempre negativo de um nunca cuja perenidade desdobra-se perpetuamente até se opor à imediatez angustiosa e vacilante do medo de uma morte iminente. A implicação dessa ideia de eternidade instaura-se pela tensão entre o numinoso tempo cósmico dos astros e o temeroso tempo humano da tempestade. Em pleno mar, o homem testemunha esse arrostamento entre o infinito e a sua própria finitude, percebendo o eco de um reflexo vertical da potente indiferença constelar sobre a atroz fragilidade de sua nau prestes a ser tragada pelas águas. Nessa sinfonia de símbolos, opera-se o confronto entre a falta de sentido de um firmamento já sem deus e a sobrevivência de uma preocupação ontologicamente expectante, própria à deriva da vida humana que a muito custo procura orientar-se pelas estrelas, pela noção teleológica de sentido e pelo medo que conduz à evitação da morte que tudo faz cessar. Em Egocentricidade e Mística, Ernst Tugendhat afirma que o ponto de vista da sorte surge simultaneamente ao dos fins: “Apenas para os seres relacionados a objetivos e com capacidade de planejamento a sorte se mostra como aquilo que eles precisam para realizar seus objetivos, mas que não são capazes de fazer ou de realizar por si mesmos” (TUGENDHAT, 2013: 32). Por conta dessa indissociabilidade entre sorte e desígnio,  a grande conquista de Mallarmé está em sustentar ao longo de seu poema uma irresolução consumativa na forma de dúvida no momento do lance de dados: o homem que pensa em jogá-los os retém em sua mão crispada como quem conserva um precioso fragmento remanescente da crença metafísica, uma espécie de amuleto fraturado mas ainda portador da mesma atitude universal comum a quem aposta e aguarda, joga e tem fé. Mas Mallarmé descrê dos velhos mitos sem lamentar a sua perda, sem nutrir vãs e acerbas melancolias. Ele ocupou-se de uma divinização do estético erigindo uma transcendência sem imanência que se antecipou ao niilismo sem chegar a incidir em um transcendentalismo, apesar de sua declarada admiração por Descartes. É por conta desse seu invulgar atilamento espiritual que se torna frustrante e mesmo inútil a busca de qualquer interpretação definitiva para o seu Coup de dés. O homem de Mallarmé não é um ser social ou sequer uma decantação psicológica deste: é o próprio homo ludens que só adquire existência mediante a estrutura viva do mais puro jogo de linguagem, o seu logos e o seu ethos por excelência. E na perspectiva mallarmeana, esse jogo de linguagem não é um mero jogo de palavras: é também o jogo das sombras das coisas que as palavras implicam, evocam e só por último cedem em dizer, as mesmas coisas que às vezes ocultam estranhas e esquecidas propriedades em suas presenças tão familiares e em seus usos corroídos pela habitualidade quotidiana que atinge a própria fala.

Às vezes um dado é apenas um dado: um antiquíssimo objeto usado para se sortear o acaso, mas que entretanto sempre computa um 7 na adição dos valores de seus lados opostos. Teria Mallarmé servindo-se dessa propriedade que comparece à própria definição do que seja um dado para monumentalizar o número 7 como o novíssimo símbolo de uma abolição do acaso figurada no Setentrião da Ursa Maior e no cômputo do único Número que não pode ser um outro? Estou convencido que sim, pois, além de invariante, esse 7 é ainda o Norte,  a orientação de rumo que corrige a errância do navegador, a perfeita soldagem poética entre a certeza do sentido e as indeterminações do imprevisível, tema aliás outrora explorado por ele no seu soneto em memória da descoberta do caminho das Índias por Vasco da Gama (Au seul souci de voyager) e que inclusive permite ventilar uma aproximação do seu jogador náufrago com Os Lusíadas. Todavia, não reclamo tal hipótese sobre a evidencia da soma resultante em 7 como qualquer gênero de decifração que pretenda ter sanado ou resolvido o enigma do Coup de dés, mas tão somente como mais uma modesta contribuição para se compreender a forma que melhor elabora a pergunta que esse extraordinário poeta nos legou. Poema à prova de exegeses conclusivas, o seu conteúdo último permanecerá sendo o das possibilidades especulativas de todo pensamento que também emitir o seu lance de dados.


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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BÉRARD, Victor. Les Phéniciens et l’Odyssée. Paris, Armand Colin, 1927.
CAMPOS, Haroldo de. Tradução de Un coup de dés, de Stéphane Mallarmé. In: CAMPOS, Augusto de, PIGNATARI, Décio, CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta. São Paulo, Duas Cidades, 1975.
MALLLARMÉ, Stéphane. Igitur. Divagations. Un Coup de dés. Paris, Galimard, 2003.
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RANCIÈRE, Jacques.  Mallarmé: La politique de la sirène. Paris: Hachette, 1996.
ROGER, Thierry. L’archive du Coup de Dés –  Étude critique de la réception d’Un coup de dés jamais n’abolira le hasard de Stéphane Mallarmé (1897-2007).  Paris, Classiques Garnier, 2010.
TUGENDHAT, Ernst. Egocentricidade e Mística, São Paulo, Martins Fontes, 2013.

 

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O poema abaixo se encontra no meu livro ARAME FALADO (2012). E já que jogo vem de jocus, o gozo alegre da graça, com um pouco de sorte ele talvez encontre algum leitor que o leia como a sátira pseudoanagógica que eu pretendi escrever: alea jacta est.

Deus não joga dados com o universo.
Albert Einstein

O que esperais de um Deus?
Ele espera dos homens que O mantenham vivo.
Hilda Hilst

 

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OS DADOS DE DEUS

deus não joga dados, prefere o baralho. outras combinações do mesmo acaso. porém quando joga já sabe o resultado. ele é o crupiê que organiza o buraco e o jóquei do azarão de cada páreo. de quebra ainda é craque em sinuca de bico. o giz do seu taco é bendito. deus não gosta de bingos e acha o xadrez muito pouco instrutivo. falsamente rebuscado, uma maquete do homem como este é do macaco. aos domingos deus joga truco com o diabo. e lhe entrega pastores ladrões e padres devassos. são suas fichas falsas e seus dados chumbados. deus joga sujo com quem merece. às vezes ele finge que perde. e só o faz para que ganhar tenha graça. deus pratica mas não tolera trapaças. na roleta russa ele é sem adversários. só acerta na cabeça do avestruz e do veado. e isso quando joga no bicho. deus ensina que com a vida não se brinca. por isso jamais assiste a jogos olímpicos. ele disfarça e diz que paganismo não é consigo. no fundo deus não é nada competitivo. apenas monoteísta e muito polido. todavia não passa trancado em cassinos. joga tava, joga bocha, aposta em loterias. o pecado de deus é não ter outros vícios. não gosta de mulher nem de bebida. às vezes só curte um sambinha. prefere mesmo espreitar precipícios e distribuir paraquedas furados a anjos caídos. deus é bom porque conhece toda malícia. tem dedos mas não belisca. gosta mais de tirar par ou ímpar. deus compra a cartela inteira da rifa. e paga com a moeda do cara ou coroa. ele só joga com moedas de ouro. o resto ele tira no palitinho. graças a isso os perdedores o fazem de caça-níquel, o que o deixa muito triste. ele considera a probabilidade uma cretinice. o seu sonho sugere o palpite e inventa a esperança. deus prefere o dominó ao fliperama. em matéria de luz ele ganha de lambança. no pôquer o seu blefe é a maior catástrofe. deus esconde o curinga e inventa outros naipes. aliás disso só deus sabe: de onde vem o vocábulo naipe. em sânscrito governador é nabab, o mesmo que em árabe é naibi, que em hebraico vira feitiçaria. mas deus joga e não complica. sua fezinha já é profecia. ele abole as regras do jogo e ensina o riso na corte do bobo. deus salva da corda o enforcado porque o seu tarô tem dois lados. e em cada um deles gira uma roda da fortuna. a sorte de deus não conhece a palavra nunca. ano passado entretanto deus foi morto (de novo) pelos cientistas. disseram que ele encorajava a jogatina. e que suas ideias eram castelos de cartas. a ciência então se comprazia em assoprá-las. deus as recolheu e não fez nada. ele não tem pressa, apenas calma. um dia ele põe suas cartas na mesa e acerta essas desavenças. enquanto isso, deus joga paciência.

 

 

 

 

 

 

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Marcus Fabiano Gonçalves nasceu no Rio Grande do Sul (Santana do Livramento, 1973). Radicado no Rio de Janeiro, é professor da Universidade Federal Fluminense. O autor publica ensaios e poemas inéditos no blog Arame Falado, no endereço:  marcusfabiano.wordpress.com. Em 2005, publicou O Resmundo das Calavras (ws editor), obra finalista do Prêmio Jabuti. E-mail: marcusfabiano@terra.com.br




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